quarta-feira, 4 de outubro de 2017

UMA VIAGEM PARA A AUTO-DESCOBERTA

Dois anos atrás tudo o que havia era a vontade de uma reinvenção de mim mesmo, de provar-me em valores que eu julgava não possuir. Sempre busquei experiências que me promovessem, entre diversos sentimentos, uma grande sensação de liberdade mas que também consoassem com um modus vivendus mais ecologicamente responsável e simples. Fez-se inevitável meu reencontro com a bicicleta!

Vivemos em um país violento onde o medo, em variados graus, talvez seja o sentimento mais presente em nosso dia a dia. Para o ciclista, os maiores medos, nesta ordem ou em ordem inversa, são o de ser atropelado e o de ser assaltado! Redescobrir as ruas de Brasília em uma bike foi um processo gradual onde, pelo ganho da confiança, deixa-se as calçadas e ciclovias (com falhas indizíveis de planejamento e execução) pelos acostamentos ou mesmo compartilhamento de faixa no trânsito (o que não pratico). A altimetria relativamente pouco desafiadora logo favoreceu pedaladas cada vez mais longas e no primeiro mês eu já registrava minha primeira pedalada de 100km. Pensava que não conseguiria tal feito e eis que me redescobria!

Se pedalar toda uma região metropolitana já ia ficando comum, um horizonte maior começava a ser demandado e era imediatamente preterido por inseguranças ainda maiores. Expor-se a variados riscos longe de casa e da família é bem diferente e mais difícil de empreender. Não à toa, do surgimento da vontade de viajar de bicicleta até a realização da primeira viagem, passou-se ano e meio flertando com a ideia. O lar nunca deixou de ser a síntese do conforto e segurança mas, para um sagitariano típico, a descoberta de novos lugares e a vivência de aventuras colocam toda a cor que a vida pede. A cada mês de corridas acumuladas no Strava, de percursos repetidos à exaustão, o próprio ato de pedalar precisava ser renovado; os vídeos de viajantes semeavam uma inveja saudável e tiravam a cicloviagem do plano das ideias absurdas para o plano do "eu também posso fazer". A estrada urgia!


"NAMORADINHA"

Minha companheira de desafio surgiu em uma época difícil quando eu lidava com uma profunda desilusão amorosa e, para não afundar de vez, busquei em uma prática física intensa minha redenção. Minha bike surgiu, portanto, já batizada como "namoradinha", numa pilhéria com fato de ser ela a aposta em um  novo bem-estar. É uma simples Gonew 5.1 aro 26, tamanho 18,5" que me chegou de segunda mão, pois não confio que tenhamos segurança pública para possuir bicicletas caras! Veio-me com aro dianteiro parede simples (que é o fornecido pelo fabricante) e traseiro aero, provavelmente de uma substituição pelo dono anterior. Alavancas Rapid Fire Shimano, relação original 42/32/22 e catraca 7V, passadores simples Yamada. Nos primeiros meses adicionei-lhe apenas suporte para caramanhola no quadro, trancas e luzes de sinalização frontal e traseira e troca de pneus. Em três ocasiões teve quebras de raios; certa vez, por segurança, parei uma pedalada por quase uma hora para substituir um raio; não poderia continuar arriscando a integridade da roda pois ainda faltavam 30km para chegar em casa. O cubo original, mal acabado, cortava os raios na curva de encaixe, então substitui por uma nova roda com aro aero que, além de ser mais robusta, também trazia um cubo rolamentado melhor e nunca mais os raios quebraram.


A PRIMEIRA CICLOVIAGEM

Em meados de 2017 com a decisão de fazer a cicloviagem já assentada e agendada, investi em tudo o que considerava necessário para formatar a bike para viagem: guidão borboleta associado a um guidão de triatlo para promover grande variedade de pegadas e mudança postural. Instalei também um extensor ahead set pois a espiga do garfo fora cortada muito curta pelo dono anterior ou fabricante. Adicionei retrovisores de mobilete, buzina eletrônica, bagageiro simples, suporte e bomba de ar, paralamas, bolsa de quadro, troquei a relação por Neco 48/38/28 com pedivela 170mm e nova catraca 7V, pedais de alumínio e apoio central unilateral. O investimento total na bike mais todos esses itens ficou em torno de apenas mil reais para uma bike totalmente equipada. Para a cicloviagem construí dois alforges com bombonas plásticas de 50 litros, perfeitamente encaixadas no bagageiro e com capacidade para tudo, inclusive material de camping!
Rota já definida para a viagem de ida a BH, via BR040


Decidi que partiria em viagem no dia 04 de Outubro de 2017, a priori até Belo Horizonte via BR 040 e retornando pelo triângulo mineiro, subindo de volta ao Distrito Federal pela BR 050. No dia anterior terminei a construção do segundo alforge e, com ajuda da minha irmã Sellena, arrumei a bagagem, com poucas roupas e muitos objetos para todas as possíveis necessidades: kits de cozinha, primeiros socorros, higiene, reparo e manutenção de bike, utilidades gerais, barraca, isolante térmico e saco de dormir. Sellena me arranjou meia dúzia de necessaires de vários tipos que deixaram tudo muito organizado por tipos de coisas e ficou comigo organizando tudo até depois de 1 da manhã! Valeu, garota!
Demorei a dormir, inundado pela ansiedade e a iminência da partida para o maior desafio que já me propunha! Não percebi o sono chegar e, antes do que gostaria, o dia raiou! Havia dormido a ultima noite, por bom tempo, na cama e quarto que convencionei chamar de meus (embora eu já não acredite em posses materiais) e tudo à volta, mesmo inanimado, parecia despedir-se expontaneamente de mim, como se fosse reciproco o desejo de separação! Ainda assim, sentia-me grato por estes confortos de que sempre dispunha, imaginando meu modo de vida quase espartano nos próximos dias. A maciez da cama, o abrigo e conforto do quarto amplo (embora atravancado de coisas demais). Nada ali era realmente meu, posto que, na morte, nada levaria comigo senão aprendizado e lembranças (supondo que exista algo post-mortem) mas agradeci por dispor desses "empréstimos de longo prazo". Fora do quarto já ouvia minha mãe na cozinha, como tantas outras manhãs... o cotidiano alheio às minhas divagações e sentimentos!

Eu queria a estrada e logo estaria nela!

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