sexta-feira, 10 de novembro de 2017

EPÍLOGO E ESTATÍSTICA

O ônibus ganhou a Rodovia dos Bandeirantes por volta das 21:00 para uma viagem de 15 horas rumo a Brasília. Pela janela passavam rápidas as referências estradeiras (como as unidades do Graal) para mim já familiares neste trajeto tantas vezes feito quando viaja em grupo. Não tive passageiro na poltrona ao meu lado e o ônibus tinha cerca de metade dos assentos ocupados, de forma que a viagem foi tranquila com poucas movimentações na cabine no decorrer dos muitos cochilos. Perto das 23:00 chegamos a Campinas e, dali, madrugada a dentro paramos nas cidades de Pirassununga, Ribeirão Preto, Uberaba... Araguari surgiu no fim da madrugada e, em seguida, a parada do café nas proximidades de Cristalina!
Tal como em toda a ciclo-viagem, diferentes brasis deram as caras, tanto na própria terra, diversa em suas expressões naturais, quanto nas pessoas, diversas em expressão cultural. Mudavam sutilmente os sotaques dos atendentes nos pontos de parada, os quitutes e iguarias culinárias oferecidos e até mesmo peculiaridades urbanas e arquitetônicas nas cidades! As paisagens converteram-se de matas tropicais úmidas gradualmente para o cerrado, ainda ocre mas já pontilhado de brotações verdes da recém-chegada estação chuvosa!
Desembarquei em Brasília por volta de 12:30, trazendo ao saguão os alforges e a caixa da bike em um carrinho de bagagens. Ali mesmo fui retirando as peças da bike de dentro da caixa e pus-me a monta-la... meio saguão parecia assistir com curiosidade a cena! Com ganho de prática, em meia hora a "namoradinha" estava restabelecida, imediatamente ganhando mais fotos de umas duas pessoas por ali, chamativa com os guidões de viagem e mais ainda assim que lhe coloquei os alforges. Entreguei a caixa a um guarda do terminal rodoviário e guiei a bike para a estação de metrô ali do lado. Em meia hora estávamos de volta a Taguatinga... em casa! No lar, nada mudara em 33 dias senão uma coelha de estimação de minha irmã, já mais crescida! Eu, contudo, sentia não ser a mesma pessoa! Podia sentir, como se estivessem cristalizadas no ambiente, os medos, receios e inseguranças que tinha com relação a esta viagem e que foram caindo pelo caminho! Entrei no meu quarto e tudo pareceu alheio demais a todas as minhas vivências, às pessoas que eu conheci e que trouxe no coração; tudo bem que é apenas um quarto com coisas... coisas não vivem, não sentem! Ainda assim, é como se meu espírito demandasse que ali também essas coisas tivessem espontaneamente, ao menos, se movido de lugar, caído ou mudado de cor, manuseadas por uma "entidade das mudanças"... a entidade, todavia, era ninguém mais senão eu mesmo! Eu mudara!

De volta à vivência doméstica, aos lugares comuns e ao trabalho, os números da aventura contrastaram com a agora aparente pequenez do meu dia a dia: Foram 1.307Km de estradas de Brasília a Belo Horizonte (748Km) e de Juiz de Fora a Ilhabela (559Km), 1.556Km no total absoluto, incluindo passeios e trânsitos pelas cidades, em três estados mais o Distrito Federal. 33 dormidas sendo 1 ônibus, 1 hotel, 1 alojamento de faculdade, 4 noites via hosts do Couchsurfing, 8 noites em barraca, 14 noites em casas de amigos (inclusive feitos na viagem) e 4 noites em Hostel. As despesas da viagem calculadas da saída até a chegada em casa totalizaram R$ 1.635,38, com média de R$ 55,86 ao dia!
A "namoradinha" teve apenas 1 furo de pneu em toda a viagem! Na manutenção houve apenas uma substituição de sapatas de freio além das 32 lubrificações de corrente e 4 pilhas para luzes de segurança. Foram 24 pedaladas registradas no Strava, ganho de elevação acumulado de 19.820 metros (mais que o dobro do Monte Everest), velocidade máxima de 64,6km/h (descida da serra para Angra dos Reis), maior pedala em um único dia com 147,6Km (Vassouras - Angra) e maior escalada contínua com 703 metros (estrada dos Castelhanos, em Ilhabela). A velocidade média global ficou em 15,3Km/h! O dia com mais horas em movimento teve 10 horas de pedalada (Taguatinga/DF - Cristalina/GO) e foram quase 102 horas em movimento!

Não vou enumerar quantas pessoas conheci no caminho, embora pudesse pois lembro de cada uma! Não gosto de transformar pessoas em números! Algumas delas tornaram-se o grande ganho da viagem, tanto em memória para ser revivida quanto em metas de reencontro por aí...

...motivação para novas "pedalanças" de um autêntico Biketariano, nascido sob o signo da liberdade!


terça-feira, 7 de novembro de 2017

DE PASSAGEM POR SAMPA

PEDALANDO NA PAULICÉIA - 05 e 06/11/17

31Km rodados
Strava: https://www.strava.com/activities/1264038668


Amanheceu meu último dia em Ilhabela com céu encoberto e ameaçando chuva. Levantamos, Taiguara e eu, por volta das 10:00; um pouco antes já havia se levantado o casal hospedado na casa e já iam terminando de preparar suas coisas para partir de volta a São Paulo. Despedimo-nos deles e eu comecei a arrumar tudo nos alforges. Taiguara pegou o carro e me levou ao centro da cidade para comprar a passagem de ônibus para São Paulo em uma loja perto do píer das barcas; em seguida, fomos a um mercado e aproveitei para presentear-lhe uma garrafa de vinho de sua escolha, no que ele foi modesto! Voltamos à casa e eu terminei de ajeitar tudo nos alforges enquanto Taiguara me preparava uma ótima crepioca para aguentar o tranco. Pus os alforges no carro pois Taiguara os levaria para mim até o píer das balsas e eu fui pedalando. Despedimo-nos próximo à entrada do píer e, na pressa dos nossos horários (o meu para chegar a tempo na rodoviária em São Sebastião e o Taiguara em sua rotina doméstica), mal pude dizer o quanto me senti grato pela acolhida tão amiga! Taiguara tornou possível fechar a cicloviagem com chave de ouro nesse lugar maravilhoso que é Ilhabela!
Taiguara, parceria nota 10 para a inesquecível passagem por Ilhabela

A balsa partiu sob chuvisco, as nuvens cada vez mais escuras sobre o estreito onde, para o norte, a chuva era grossa. Os enormes petroleiros baloiçavam nas águas mais turbulentas do que no dia de chegada e um vento frio cortava a travessia. As balsas até mesmo haviam tido uma paralisação temporária naquela manhã devido à força dos ventos que, somada à enorme demanda de começo de semana, resultou em uma fila quilométrica de carros lá em Ilhabela com previsão de espera de até três horas para deixar a ilha. Mais uma vez, a decisão de viajar de bike marcou ponto a favor!

Na balsa, fazendo a travessia do estreito de São Sebastião de volta ao continente






Faltando apenas vinte minutos para o horário de embarque no ônibus, desembarquei da balsa no píer da cidade de São Sebastião. Felizmente o percurso para a rodoviária local é uma reta e cheguei ao terminal pouco antes de o ônibus encostar em sua baia. Desmontados os alforges, o motorista colocou-os junto à bike deitada no amplo porão quase vazio do ônibus. Como a quase totalidade dos passageiros faria uma curta viagem somente até São Paulo, poucos tinham algo a despachar além das bagagens de mão! Nessa viação não fui cobrado de nada em especial para o transporte da bicicleta: nem taxas extras e nem embalagem para a bike!
O ônibus partiu da rodoviária de São Sebastião com pontualidade britânica às 15:30 para uma viagem de duas horas até o terminal Tietê, em São Paulo. Logo tomou rumo norte, saindo da cidade por onde eu a ela chegara, fato que estranhei de início pois imaginei que ele subiria para a paulicéia a partir de Santos. Daí ouvi de um passageiro que a subida da serra seria feita a partir de Caraguatatuba, de forma que refiz a estrada em sentido contrário até lá, revendo pela última vez as últimas praias continentais por onde passara de bike. Então o ônibus enveredou por dentro de Caraguá parando em alguns pontos distintos para pegar mais passageiros. Fez rápida parada na rodoviária de Caraguá e seguiu para a subida da serra via SP-099. Ao meu lado, tive como companheiro de viagem um garoto de 20 anos indo para a capital para um treinamento da empresa que acabara de o recrutar. Conversamos durante o trajeto justamente sobre viagens enquanto o ônibus fazia a subida de muitas curvas serra acima. Rapidamente (para os padrões de tempo a que estava acostumado) alcançou o topo da serra de onde podia-se ver o mar já distante, uma tênue faixa azul indistinta no horizonte nublado; ali, despedi-me dele prometendo voltar! A paisagem de mata atlântica fechada começou a dar lugar a muitos pastos e plantações de pinheiros entremeados por rios com águas estagnadas que, depois, o parceiro de viagem veio a me explicar serem braços da represa de Paraibuna. Como tantas outras país afora, esta também não ia bem, com os extensos barreiros nas margens evidenciando nível baixo da água! O garoto me contou-me que um tio tinha ali uma casa e trazia-o a pescar quando moleque!
O ônibus evitou entrar em São José dos Campos enveredando pela SP-070 e, depois da cidade de Jacareí, entrou na BR-116, a famigerada Via Dutra, por onde prosseguiu entrando na grande São Paulo por Guarulhos. Logo a confusão urbana da cidade cresceu de favelas em morros e baixios para bairros cada vez mais estruturados e adensados e a rodovia foi-se tornando avenida arterial, com trânsito bastante carregado. Os grandes prédios industriais rarearam à medida que prédios envidraçados iam tomando a paisagem, evidenciando aproximação da região central da cidade. Dali a pouco caíamos na marginal do rio Tietê e logo chegamos ao enorme terminal rodoviário.O desembarque foi rápido e deixei para trás o boné que levara em toda a viagem, esquecido na poltrona.
Sempre sob olhares curiosos, montei os alforges na bike e atravessei o terminal meio perdido, chegando à Avenida Cruzeiro do Sul. Ali montei-a e pedalei rumo à hospedaria reservada para aquela noite, no bairro do Carandiru. Segui por uma boa ciclovia implantada sob a via elevada do metrô, no canteiro central da avenida. Passei pelo Parque da Juventude, construído onde outrora fora existira a maior penitenciária do país, um inferno sobre a Terra chamado popularmente de Carandiru, parcialmente demolido em 2002. Na implantação do parque, preservaram alguns edifícios ainda reconhecíveis por serem caixotões de concreto com aparência de semi-abandono e muita pichação. Entrando pela Av. Ataliba Leonel descobri que boa parte do antigo Carandiru permanece de pé e ativa como cadeia feminina.
Cheguei ao Metrô Hostel por volta das 19:00, o céu já escurecendo! Na recepção o Hostel pareceu bem estruturado e amplo, oferecendo sala de estar com PCs conectados à internet e TV a cabo, Wifi e uma cozinha razoavelmente equipada. Todavia, achei o quarto demasiado apertado pelo exagero de 12 leitos em beliches mais armários. Haviam apenas dois sanitários para essas possíveis doze pessoas e, absurdamente, um chuveiro! Levei os alforges para o quarto e saí de bike para comprar o jantar. À noite, alguns hóspedes que parecem ser recorrentes no lugar conversavam e riam alto com funcionários na cozinha até perto da meia-noite. No quarto, cerca de metade dos leitos foram ocupados; pessoas muito barulhentas até mesmo para abrir uma simples bolsa ou guardar algo, sem o mínimo bom senso para aquele tipo de acomodação coletiva, além das conversas que chegavam altas lá da cozinha... foi difícil dormir. Por volta das 2 da manhã ainda chegou mais um hóspede barulhento despertando, não só a mim, como aos demais! A experiência serviu para nunca mais escolher Hostel sem ver a quantidade de leitos por quarto e, sinceramente, eu contra-indico o Metrô Hostel em São Paulo!


O café da manhã no lugar foi bem básico mas bastante. Dei baixa da hospedagem, deixei os alforges guardados em um lugar na recepção e logo saí com a "namoradinha" para dar umas voltas por Sampa! Desci primeiro para o terminal Tietê onde fiquei lá e cá entre os balcões de duas viações vendo a passagem para Brasília e as condições de despacho da bicicleta. Infelizmente, ali a ganância se fez presente em ambas e acabei optando pela Viação Catedral, onde tive de pagar R$ 100,00 para despachar a bike além de ter de providenciar uma caixa para embala-la! Resolvida a compra da passagem, desci para o centro, rumo à famosa Avenida 25 de Março onde pretendia comprar uma variedade de itens para a bike, utilidades domésticas e para viagens futuras com preços camaradas... ilusão! Em TODAS as lojas que entrei na 25 de Março, os preços estavam iguais aos de qualquer feira de importados em Brasília! A variedade de lojas sequer foi capaz de mostrar disponibilidade de todas as coisas que eu procurava e fiquei pensando em quê aquele lugar justifica toda a fama que tem! A rua é um caótico formigueiro onde carros e pedestres disputam o pouco espaço com camelôs, pregoeiros, ambulantes e pedintes e onde flanelinhas tomam descarada posse das vagas de estacionamento públicas nas ruas, extorquindo os motoristas. Alguns tinham até máquinas de cartão à mão, cobrando estacionamento em vagas rotativas e não entendi se é uma coisa autorizada ou mesmo organizada pela prefeitura ou se é mesmo a extorsão elevada a um novo patamar!
Pelo Google Maps no celular, pedalei rumo à Liberdade, entrando na rua Galvão Bueno pela extremidade sul. Subi-a inteira sob suas lanternas orientais vermelhas e brancas revisitando lojas conhecidas nas várias viagens que para ali eu fizera com o grupo de tambores japoneses do qual participei por anos. Como adoro comida japonesa, tratei de almoçar e comprar um bentou (marmita japonesa) além de várias outras gostosuras. Ainda insisti em procurar alguns itens da minha lista de compras da 25 de Março mas em vão! O que eu encontrei estava ainda mais caro do que em Brasília! Já iniciando meu retorno ao Hostel, passei pela Praça da Sé para rever a bela catedral em estilo neo-gótico.
Voltei para o Hostel e montei os alforges na bike, saindo à procura de um lugar onde pudesse conseguir a caixa de bicicleta. Rodei um bocado indo ao Carrefour próximo ao Terminal Tietê e depois perdendo considerável tempo tentando encontrar a loja Decatlon sem sucesso, perdido no emaranhado de ruas. Por fim, fui encontrar uma grande loja de bicicletas perto do Parque da Juventude, a Bike North onde, expondo minha situação, fui pronta atenciosamente atendido e logo me trouxeram uma caixa de bicicleta aro 29'. E lá fui eu, levando até o Terminal Tietê a bike carregada em uma mão e a caixa no outro braço... a quantos esforços se presta um ciclo-viajante, pensei!

Cheguei ao Terminal Tietê três horas antes do horário de partida do ônibus, marcado para as 20:00. Ainda pude jantar o bentou trazido da Liberdade e dar carga completa no celular em um totem com muitas tomadas disposto no terminal para este fim. Por fim, minha companheira dessa saga de 33 dias, essa guerreira que havia rodado quase 1400Km desde Brasília, que encarou poeira fina e lama, pedregulhos, mato e areia de praia, que subiu e desceu uma montanha duas vezes... agora a "namoradinha" ia sendo reduzida para caber em sua caixa, desmontada quase totalmente peça a peça. A "namoradinha" fez e resistiu a muito mais do que o esperado quando a adquiri ano e meio antes e não pestanejou! Lembrei de seu único "momento de mau humor" na trilha para a cachoeira lá em João Pinheiro-MG... e nunca mais deu trabalho! Não precisei de uma bike cara com peças de primeiríssima qualidade para fazer a viagem! Submeti-a a provações maiores do que diziam que ela aguentaria! Agora, ela viajaria protegida e descansada!

Entrei no ônibus revendo mentalmente toda a vivência da viagem e percebendo que eu mudara nos receios e na amplidão de horizontes. Estava voltando para casa mas já não sentia mais o mundo como algo fora de casa! Eu tornara, ao menos em minha alma, todo o mundo uma casa possível para mim! Eu pedalara apenas um pedaço de Brasil mas já sentia e ainda sinto ao escrever agora: ainda há muita estrada a pedalar! Como versa um livro de que gosto muito:

"Essa é uma outra história e terá de ser contada em outra ocasião!"

O guarda municipal até tentou... mas não soube fotografar! rs

Ajudinha para embalar a bike para viagem

De volta para Brasília

domingo, 5 de novembro de 2017

IDA E VOLTA A CASTELHANOS

ESCALADAS NO PARAÍSO - SEX, 03/11/17 E SÁB, 04/11/17

47,7Km rodados
Strava: https://www.strava.com/activities/1261390652

https://www.strava.com/activities/1261390618






Ilhabela é uma ilha bem grande com cerca de 25km de comprimento, massiva em seus picos que passam de 1300 metros de altitude e toda a área urbana está no lado voltado para o continente. No lado oceânico, as praias são todas desertas ou semi-desertas tendo, quando habitadas, apenas pequenas comunidades caiçaras que vivem da pesca e do turismo. Muitas praias são acessadas apenas por barcos e outras, por trilhas a pé no meio da mata atlântica intocada. No centro do lado oceânico fica a principal praia, Castelhanos.
Taiguara recebeu na casa um casal ao qual alugou o quarto via AirBnB para todo o final de semana e eu passei a segunda noite no quarto dele, tendo preparado uma segunda cama! Sugeriu-me então ir conhecer Castelhanos, uma das principais atrações da ilha (se não for a principal) e logo gostei da ideia! Uma rápida pesquisa revelou-me o que viria pela frente: a trilha de 20Km subia por cima da dorsal montanhosa que corta a ilha de norte a sul, elevando-se 700 metros acima do nível do mar na metade do caminho! Seria a maior escalada de bike que eu já teria feito na vida!
Preparei a "namoradinha" com uma limpeza e óleo na corrente e, para deixar mais leve, decidi não levar alforge, prendendo diretamente ao bagageiro a barraca, saco de dormir e uma mochila. Como a escalada era por demais exigente, eu teria de pernoitar em Castelhanos. De início eu pretendia sair após o almoço mas segui as recomendações do Taiguara de não tardar, pois a trilha é controlada (Ilhabela é um Parque Estadual) e tem o acesso para ida fechado por volta das 14:00. Saí da casa perto do meio-dia passando por um mercado na cidade para abastecer-me de lanches e garrafas de água; apenas o bastante afim de evitar peso desnecessário! Em seguida, fiz um saque em caixa eletrônico pois em Castelhanos não há internet e nenhum tipo de telefonia, então todo pagamento precisa ser feito em dinheiro!
Seguindo o GPS no celular, logo encontrei o começo da trilha que, de asfalto, passa a calçamento de pedras e, depois, ao chão batido! Cheguei à guarita de controle da trilha quase no limite, perto das 14:00; um guarda municipal tomou-me alguns dados e pronto... agora éramos apenas eu, "namoradinha" e a montanha! A mata atlântica, sempre volumosa e exuberante, fecha-se por cima da trilha em quase toda a sua totalidade, ensombreando-a e tornando a subida mais agradável. Por todos os lados, abundam as samambaias (que Taiguara exortou-me a apreciar), flores, cipós e altas árvores de troncos retos cobertos de musgo. Uma espécie de borboleta de um azul metálico tornaria-se recorrente dali pra frente, grandes e ariscas.
A trilha é usualmente utilizada por jipeiros e outros veículos 4x4, os únicos que conseguem encarar o terreno acidentado de grande inclinação e muitas pedras soltas. Como eu comecei a subida quase no limite do horário, a ida foi bastante tranquila com uns poucos jipes surgindo por trás e logo cessaram de aparecer... o guarda fechara o acesso lá atrás!. O silêncio da mata só era rompido pelo "som crocante" das rodas da bike no cascalho solto e os barulhos dos mais variados bichos. Durante a primeira meia hora a estrada apresentou-se até em boas condições e, então, começaram a surgir alguns trechos ruins com o chão danificado pelas correntezas das chuvas ou com a presença de atoleiros. Com cerca de um terço do caminho feito, encontrei um casal fazendo a subida também de bike: eram o Wilians e a Patrícia, vindos da cidade de Jacareí/SP. Passamos a fazer a subida os três juntos; eles não levavam materiais para pernoitar em Castelhanos, estando programados para voltarem naquele mesmo dia e, para isso, sugeri que contassem com os jipeiros!
A trilha ficou cada vez mais difícil conforme aumentava a altitude com muitos trechos bastante destruídos pelas enxurradas; nesses trechos só era possível subir empurrando as bikes, tanto devido à muito ingreme inclinação quanto ao chão traiçoeiro de muito cascalho e grandes pedras soltas que rolavam fácil morro abaixo. Wilians e Patrícia, mais de uma vez, temeram seguir adiante devido ao tempo que levaríamos para chegar em Castelhanos e, no caso deles, o tempo para encontrar e combinar lá a volta com um jipeiro; Patrícia particularmente sentia mais o desafio físico da aventura! 


Em certo momento, surgiu uma cascata de água cristalina às margens da trilha onde o chão bem pisoteado denunciava ser um ponto de parada para abastecer garrafas d´água. Estava muito fresca e aproveitamos para molharmo-nos um pouco também pois, apesar de não pegarmos sol durante a trilha, o dia estava abafado! No decorrer do caminho, placas indicam pontos de descanso em recuos feitos às margens da trilha, pensados justamente para pedestres e ciclistas! 
Após quase duas horas do início da subida, uma placa indicou o topo da trilha. Estávamos 703 metros acima do nível do mar! Dali pra frente seria quase que somente descida mas não seria fácil: alguns ciclistas retornando nos avisaram que o caminho estava em pior estado do outro lado! Após uma tomada de fôlego, começamos a descida logo encontrando trechos realmente perigosos que descemos com a devida cautela. Temi que as sapatas de freio da "namoradinha" não aguentassem tamanho desgaste pois seriam 10Km freando direto, a bike carregada com meu peso somando totalizando quase 100kg... e os freios ainda teriam que estar em condições de uso para a volta, já que eu não levei sapatas de reserva!
 Em alguns trechos da descida novamente precisamos desmontar das bikes para fazê-los a pé devido ao cascalho solto e aos buracos. Pouco adiante do ponto culminante da trilha, encontramos um mirante construído em um deck de madeira, diretamente voltado para a praia de Castelhanos. Paramos para uma rápida apreciação da vista e eu fiz o vídeo que se segue:



O trânsito em sentido contrário, que durante a nossa subida fora muito ocasional, começou a aumentar: os jipeiros já haviam começado a deixar Castelhanos onde há o horário-limite das 17:00 para todos deixarem a praia, afim de chegarem à guarita da trilha antes do anoitecer. Depois desse horário é preciso ficar em Castelhanos, providenciando camping ou aluguel de casa de praia! Com o aumento do número de jipes retornando, aumentou a pressão para chegarmos logo à praia pois Wilians e Patrícia não estavam preparados para pernoitar, inclusive tendo deixado os filhos na hospedagem na cidade! Nos trechos bons descíamos o quão rápido fosse possível mas com o progresso sempre interrompido pelo aparecimento dos trechos ruins e com recuos para deixar passarem os jipes em subida, brigando sacolejantes com a montanha, pesados com 10 a 12 passageiros atrás. Em dado momento a descida fez-se sentir em meus braços com a pressão exercida pelo peso corpo e os sacolejos da bike no terreno acidentado. 
Ao fim de três horas de trilha, finalmente chegamos em seu final em terreno plano e encontrando o estacionamento dos jipes no meio da mata. Certamente haviam mais de cinquenta jipes estacionados ali e devia haver uns 100 no pico do dia! Passamos por uma ponte sobre um rio raso e seguimos por uma trilha onde o barro já ia dando lugar à areia e havia um grande fluxo de pessoas em sentido contrário, já deixando a praia rumo aos jipes. Passamos por uma vendinha de artesanato local e então, o deslumbre: à luz do sol, o oceano surgiu num forte e puro azul-marinho à nossa frente com a praia de areia branca e fina! As ondas quebravam fortemente na areia na porção central onde se chega à praia, toda sinalizada com bandeirolas vermelhas, indicando perigo para o banho! Castelhanos estendia-se por pelo menos 1 quilômetro para a esquerda e pouco menos à direita, seu formato de ferradura fechado por trás pela mata das montanhas que subidos e descemos. Estava repleta de turistas na faixa de areia e nos vários quiosques de onde vinham cheiros apetitosos! Alguns dos quiosques são pequenos e outros muito grandes, com estrutura completa de restaurante, erigidos com materiais rústicos, cobertos de palha em sua maioria! Ali separei-me do Wilians e da Patrícia que foram procurar algo para comer antes de resolver a volta de jipe e eu fui procurar a Helena, amiga do Taiguara que eu fiquei de encontrar em Castelhanos e também o camping que me fora indicado. 
Passei por uma pequena igrejinha, algumas casas de praia para aluguel e logo achei o Camping do Leo, com estrutura simples mas bastante: sanitários separados por sexo, chuveiros quentes (estranhamente dispostos somente no lado feminino mas homens também usam, claro), pias e uma ducha de água fria canalizada de riacho. O proprietário também montou várias coberturas de lona armada com bambus com o chão de areia também forrado por outras lonas onde armam-se as barracas. Pra quem vai desprevenido, há a opção de alugar barraca! Haviam em torno de dez barracas armadas além de duas caminhonetes grandes e até um motorhome! Tratei de descarregar tudo e rapidamente armei a barraca, guardando dentro, inclusive, a bike! Saí então a explorar a praia, que já ia ficando deserta, com quase toda aquela massa de turistas tendo partido nos jipes. Encontrei Helena no quiosque onde ela passara aquele dia trabalhando e passaria também os seguintes, fazendo um "freela". Fomos para a ponta da praia onde ficam as casas dos caiçaras e lá encontramos uma pastelaria caseira onde "jantamos". Helena voltou comigo para o camping onde eu estava e fiz-lhe acesso a um banho quente (se me lembro, no camping onde ela estava o banho era frio). Quando começou a escurecer, sentamos ali na areia conversando sobre vidas amorosas, as várias que cada um de nós já teve; uma lua cheia começou a subir do mar, refletindo-se magicamente nas águas e alcançando as nuvens esfiapadas.



Helena quis permanecer um pouco mais e  deixei-a com aquele luar indecente... por um ou dois momentos quis chamá-la para partilharmos a dois não só o luar mas toda a noite com todas as possibilidades mas a aura do lugar me distraiu mais fortemente do homem e me trouxe o divagante que sou de vez em quando. Caminhei descalço quase toda a praia , iluminada apenas pelo luar, deixando que o mar me tocasse de leve os pés, pensando em coisas próximas e distantes tanto fisicamente quanto cronologicamente. Apreciei sozinho os coaxares dos sapos na mata tecendo suas prosas ininteligíveis e encontrei um resto de fogueira na areia, ainda fumegante, que reavivei com uns gravetos. O fraco calor cortou um pouco da fria aragem e eu observava as luzes oscilantes de duas embarcações no mar... provavelmente lanchas ou iates de turistas abastados! Quando voltei, menos divagante e mais imediatamente "carnal', Helena já não estava... uma pena!

Acordei pouco antes das 7:00 e vi o tempo enevoado. O vento estava bastante frio mas logo começou a melhorar com o sol forçando passagem pelas nuvens pouco a pouco. No mar muitos barcos dos caiçaras em sua pesca matinal, a maioria canoas simples de madeira a remo e outros motorizados. Ali os caiçaras vivem da pesca, dos quiosques na praia e como guias turísticos. Em certo ponto da praia, três puxavam juntos uma longa corda trazendo do mar uma enorme tarrafa. A praia, ainda deserta, ia ganhando movimento muito preguiçosamente com os quiosques abrindo aos poucos e dispondo suas mesas e cadeiras. Era Sábado e uma multidão de turistas logo chegaria! O sol finalmente rompeu a névoa e começou a aquecer o dia; resolvi desbravar as trilhas da região!
Blusa e short de pedalar com proteção UV, protetor solar, lanches e água numa bolsa de costas... parti para o lado sul da praia onde, a partir das casas dos caiçaras, uma trilha conduz a outras praias. Atravessei um arroio e entrei na trilha, subindo um morro de onde, do alto, pude ver toda a praia de Castelhanos; é o Mirante do Coração! As trilhas são pequenas e pouco demarcadas mas descobri, depois, que fiz as menos movimentas pois, adentrando mais a mata, encontrei uma trilha principal de chão nu com largura para passarem carros! Seguindo por ela, cheguei a uma pequena comunidade caiçara onde há ate mesmo uma igreja protestante! Á beira da pequenina praia mansa há um galpão comunitário com alguns maquinários dentro, instalado pela prefeitura, e me surpreendeu positivamente ver que o poder público, ao menos em Ilhabela, chega até estas comunidades isoladas! Cerca de vinte minutos depois, cheguei à praia vermelha! Há ali uma propriedade grande à beira da praia com um gramado impecável e uma bela casa, totalmente contrastante com as simples e rústicas casas dos caiçaras ali perto. A praia é de tombo (descida muito inclinada da faixa de areia para a água) com forte quebra de ondas no centro. Vi na areia grandes pegadas de algum cão e logo ele apareceu: enorme, talvez pesando tanto quanto eu, surgiu meio ameaçador junto de outros dois menores, desses bem chatos e encrenqueiros mas, por sorte, era na verdade o mais dócil dos três, logo permitindo e exigindo afagos. Uns três pescadores limpavam suas tarrafas ali perto, indiferentes à minha presença. Tive vontade de entrar no mar, inclusive por estar esta praia totalmente deserta mas a curiosidade foi maior. Atravessei-a inteira, transpus um pequeno arroio e encontrei a trilha seguinte!
As trilhas iam ficando menores e a mata mais cerrada, com o terreno tornando-se também mais desafiador. Como recompensa, a flora também ficou mais bonita com uma profusão de flores. Encontrei grandes bananeiras, algumas carregadas, e um plantação de mandiocas. A trilha passou a ser muito difícil de fazer tornando-se mero rastro no meio da mata densa e úmida e concluí que eu tomara a trilha errada num bívio... resolvi voltar, desistindo de chegar à praia da Figueira. Passando novamente pela comunidade na praia mansa, só então notei a curiosa placa de aviso criada pelos moradores locais que, apesar de constituir um aviso sério de uma auto-proteção necessária, não deixou de ser engraçada!
Vista da trilha rumo à praia Vermelha
No caminho fui recolhendo todo o lixo que eu havia visto largado pela trilha durante toda a ida. Parte deste lixo estava em locais de acesso mais difícil que a maioria dos turistas não encarariam, o que me fez considerar que, infelizmente, pode ser um descuido dos próprios caiçaras, íntimos daqueles caminhos. Esta trilha maior chega à praia por trás das casas dos caiçaras! 




Descartei duas sacolas cheias de lixo na caçamba em frente às casas, onde é feita a coleta, e pisei novamente em Castelhanos! Atravessei a pé uma parte rasa de mar até alcançar uma ilha que, de tão próxima, na maré baixa fica acessível a pés secos. Passei ali algum tempo em contemplação às ondas quebrando nos rochedos.
A praia já estava enchendo de visitantes, muitos claramente estrangeiros. O relógio ia pelas 11:00! Passei no camping para descansar um pouco e comer algo e logo saí para empreender a caminhada rumo ao extremo norte de Castelhanos, onde o Google Maps me indicava a existência da cachoeira do gato. Atravessei toda a praia, já bastante movimentada, os quiosques com as mesas totalmente ocupadas e vi Helena, num deslumbre rápido, pra lá e pra cá atendendo aos clientes! Perto do fim da faixa de areia encontrei o arroio onde Taiguara me sugeriu deitar dentro da água apreciando o mar; onde termina a areia há mais um quiosque e o começo da trilha para a cachoeira! Esperei que um grupo guiado à frente se afastasse  um pouco pra que eu pudesse fazer a trilha ouvindo apenas a mata e entrei. Trilha fácil de 1,5 quilômetro, tem no meio do caminho uma ponte de tábuas e cordas sobre um riacho. 


Em uns dez minutos cheguei à cachoeira do gato, uma queda d´água não muito volumosa mas bastante visual escorregando por um enorme rochedo liso e bojudo. O poço abaixo é pequeno mas oferece uma ótima hidromassagem natural. A água corre então por cima de um enorme rochedo lajeado para despencar novamente, perdendo-se na mata. Haviam apenas meia dúzia de pessoas quando cheguei e havia tranquilidade; desfrutei do banho revigorante e fiquei perto de 1 hora no lugar. Grupos guiados por caiçaras iam chegando um depois do outro, permanecendo pouco tempo (provavelmente devido ao tamanho reduzido do poço pra banho), de forma que o lugar não virava uma farofa horrenda!





De volta à praia, entrei no mar pela última vez em toda a viagem, a meio caminho entre o fim da praia e o meio, que é perigoso para banho. Furei ondas até chegar em um ponto bom para banho e me despedi mentalmente desta sensação impossível de viver em Brasília! O relógio marcava umas 14:30 quando cheguei à barraca para comer algo e tirar um rápido cochilo. Às 16:00 eu já havia desmontado a barraca e arrumado tudo no bagageiro da bike. No camping do Léo boa parte dos demais campistas já haviam ido embora ou terminavam seus preparativos. Outros permaneceriam neste paraíso para o dia seguinte que, sendo Domingo, deveria ser de partida generalizada.
Juntei-me com a "namoradinha" ao grande êxodo de visitantes rumo à saída da praia; passei pelo quiosque para despedir-me da Helena. Ela ficaria pelo menos até Segunda-Feira ali! No limiar do acesso da praia olhei para trás, e me despedi do mar, desejando poder voltar ali em breve!
A subida de volta foi notoriamente mais difícil do que a vinda do outro lado da montanha, sendo esta mais íngreme e acidentada, com os trechos ruins em piores condições. Os jipes passavam por mim sacolejando violentamente sobre os buracos e rasgos no chão feitos por enxurradas, derrapando nos pedriscos soltos; os turistas a bordo riam, alguns apreensivos, outros me olhando incrédulos, seus olhares praticamente gritando "-é muita disposição e coragem". Várias vezes passaram por mim gritando incentivos ou elogiando a disposição! Não temi os jipes pois todos manobravam bem este caminho para eles trivial; a maioria sabe lidar bem com a presença de um cicloturista na trilha já difícil por si só; temi as caminhonetes de visitantes que, pouco ou nada familiarizados com o caminho, de vez em quando faziam certas barbeiragens, ora a ponto de capotar numa passagem errada de um buraco, ora a ponto de lançarem-se para fora da estrada, rumo aos abismos da montanha no meio da mata! Para a passagem destas eu parava e recuava totalmente rente à mata no lado emparedado pela montanha!
Preocupava-me o tempo... precisava terminar a trilha antes de escurecer! Levei quase duas horas para chegar ao mirante, onde parei para um lanche com muito carboidrato e para descansar. 




Depois, mais uns 20 minutos até finalmente chegar ao topo da estrada. A descida foi mais tranquila com a redução da quantidade de veículos; na metade da descida, os carros cessaram de aparecer e o relógio já passava das 19:00 em horário de verão quando finalmente alcancei a guarita de entrada da trilha de Castelhanos. O sol já se fora e o céu começava a escurecer quando reencontrei as ruas de pedra e depois asfalto...estava de volta à cidade! A volta de Castelhanos durou três horas e meia!
Passei num restaurante Subway, em uma padaria; na cidade os restaurantes, bares e quiosques, todos lotados, ferviam na noite de sábado. De vez em quando algum jipe ou carro conversível passava com música ruim e gente bonita ainda em trajes praieiros. Cheguei à casa do Taiguara já com noite fechada e reencontrei o casal de paulistas lá hospedados! Um banho quente reconfortante e um lanchinho na varanda, curtindo a brisa marinha que ia trazendo uma tempestade do sul. O casal saiu para jantar e em dez minutos as estrelas sumiram e deram lugar a uma chuva noturna com trovões e relâmpagos... o continente sumiu de vista! Os gatos aninharam-se dentro da casa e lavei as roupas de pedalar para a partida no dia seguinte, torcendo para que secagem o melhor o possível. A chuva cessou, estendi tudo no varal e deitei, cansado do dia de trilhas a pé, cachoeira, mar, subida e descida de montanha.
























quinta-feira, 2 de novembro de 2017

7ª PARADA: ILHABELA

FORA DO CONTINENTE - QUA, 1º/11/17


30 Km rodados


Strava: https://www.strava.com/activities/1256753732
Progresso da viagem: 100% (519Km)



Deixei Caraguatatuba pedalando pela orla ensolarada, ironicamente bela diante de tudo que eu passara ali! Uma enorme e maciça ilha ia crescendo na paisagem marítima à frente, quase passando-se por uma continuação  peninsular do continente, seus enormes picos em altitudes superiores à de Brasília perdendo-se entre as nuvens. Conforme eu descia para o sul da cidade, os bairros iam ficando menos adensados, com os prédios rareando e dando lugar a amplas casas de veraneio, o asfalto tornando-se paralelepípedos! Cortei para leste e reencontrei a BR-101 onde, no limiar da cidade, parei em um Mercado para rápido reabastecimento de víveres! Eu não seria pego desprevenido em absolutamente nada! Certifiquei-me de que ainda possuía boa quantidade de álcool para fogareiros, créditos no telefone e parti! O tempo que eu julguei largamente suficiente para uma pedalada de pouco mais de trinta quilômetros foi se apertando com o surgimento de uma sequência de subidas e descidas que tornaram-se umas três vezes mais difíceis de transpôr devido ao cansaço acumulado de seis dias seguidos de pedaladas! 
A tarde já passava das 14:00 quando finalmente cheguei à cidade de São Sebastião, o portão continental de acesso a Ilhabela! Com ares de cidade de pescadores, a parte que aparenta ser a mais antiga conseguiu restaurar em mim, pela visão do pitoresco, aquele prazer de estar nessa viagem! Pedalei apressado pelas ruas parando umas três vezes para consultar o mapa afim de não perder tempo demais tomando rumos errados. Nunca uma cidade relativamente pequena pareceu tão enorme; nunca dez quilômetros pareceram consumir tanto do meu precioso e apertado tempo! Complementando o mapa com confirmações das pessoas nas ruas, cheguei ao píer das balsas por volta das 14:30, atualizando constantemente meu anfitrião sobre meu progresso. A balsa levou 10 minutos para chegar, desembarcar e embarcar. 
Pela primeira vez fiz uma travessia de balsa! Operadas pela concessionária Dersa, as embarcações de aço e motorizadas a diesel medem em torno de 50x20 metros, comportando veículos de todos os tamanhos e passageiros a pé e de bicicleta em deques cobertos nos cantos. Apenas veículos automotores pagam a travessia, incluindo motocicletas. "Namoradinha", como sempre, era alvo de olhares curiosos com os dois grandes alforges estanques; um homem fez notar em comentário: "-Parece até que saiu de fábrica assim, toda ajeitadinha! Geralmente o pessoal empilha e amarra a tralheira em cima da bike!" Um chuvisco repentino começara junto com a travessia e, por isso, deixei de registrar a travessia de ida para a ilha temeroso de molhar o celular! As águas do estreito de dois quilômetros de largura naquele trecho traziam ondas suaves que a proa reta da embarcação ia quebrando num leve sobe e desce rítmico, aspergindo respingos nos pára-brisas dos primeiros carros. À esquerda, um longo píer com dutos recebia dois grandes navios petroleiros da Petrobrás, de onde o óleo é bombeado pelos dutos para o continente. À direita, a saída sul do canal conduz ao mar de Santos.
Passava das 15:00 quando desembarquei em Ilhabela! O chuvisco cessara e logo ganhei as ruas do lugar, primeiro por uma ótima ciclovia que parte do píer das balsas rumo à avenida principal e, depois, para ruas às margens das praias. Uma ou duas subidas depois e eu estava no acesso à rua do meu anfitrião... e então o susto: uma subida quase vertical, com inclinação de quase 45º, calçada em paralelepípedos! Eu não aguentaria tal subida pedalando e, após alguns metros, constatei que sequer empurrando a bike com seus 40kg eu daria conta. De repente, a bike parecia ter passado a pesar 80kg! Com grande esforço, subi até um patamar à entrada de uma casa e lá desmontei os alforges da bike, que subi primeiro! Depois dessa subida, um patamar dividia-se em duas ou três ruas e eu continuaria subindo justamente pela mais íngreme... por fim, avistei a casa conforme as descrições que o anfitrião me dera!
Taiguara recebeu-me à soleira da casa meio surpreso com a cena em que eu subia a bike quase escorregando naquela inclinação. Recebeu-me calorosamente e logo voltei para buscar os alforges. Enfim, ali estávamos, "namoradinha" e eu naquela inesperada elevação 80 metros acima do nível do mar com uma bela vista para o estreito que separa a ilha do continente! Taiguara rapidamente me deu orientações para me instalar, tendo deixado à minha disposição o quarto principal da casa com uma cama de casal. Deu-me algumas orientações, apresentou-me os dois gatos moradores da casa e logo saiu para o trabalho, deixando-me sozinho na casa com as portas abertas! Que inusitado, pensei, que exista no Brasil um lugar onde ainda se recebe um "estranho" e o deixa em casa... e com as portas abertas! Depois de refletir um pouco percebi que a própria condição de ilha do lugar levava a essa sensação maior de segurança dos moradores! Meio cansado, penas coloquei as coisas para dentro do quarto, escondi a bike numa lateral da casa e preparei algo para comer! 

Vista para o estreito de São Sebastião
A casa é uma joia aconchegante, típica casa de pescador com as paredes grossas e de reboco irregular pintado de branco, janelas e portas pintadas em azul. As janelas são do tipo guilhotina, portas de madeira folha dupla e as passagens dos ambientes encimadas por grossos caibros de madeira maciça; o piso é de cimento queimado decorado aqui e ali com pequenas peças de azulejo ou pedra à guisa de mosaico e o teto tem forro paulista. Na cozinha à americana, uma grande variedade de potes com temperos, especiarias, castanhas e nozes dispõem-se em prateleiras de madeira grossa; há uma salinha de jantar com uma mesa e cadeiras rústicas, uma sala de estar onde não há TV e a peça principal é uma antiga cristaleira em cujas prateleiras abundam literaturas universais, uma coleção de câmeras fotográficas antigas, uma máquina de escrever e outras peças de decoração de diversas origens geográficas! Há também uma área de serviço, um banheiro e dois quartos. O menor pertence ao Taiguara e o maior é de um amigo, dono da casa, que mora em São Paulo e somente vai ali de vez em quando. A maior parte do tempo este quarto (que seria o meu nesta noite) é alugado pelo aplicativo de hospedagem caseira AirBnB.

 Por volta das 16:30 alguém chamava pelo Taiguara à porta! Era a vizinha, Beatriz, muito gatinha em seus 22 anos. "Rebelde", despojada e anti-mainstream, foi entrando sem cerimônia e pedindo celular emprestado para passar umas mensagens, pois estava sem... gostei dela! Logo emendamos ótima conversa e ela me convidou a ir à sua casa onde ofereceu-me um almoço tardio. Acendeu um baseado e dali a pouco estávamos conversando, recém-conhecidos, sobre amores e desilusões, as implicações sociais do sexo, ideologias e algo meio existencialista... Passei umas três horas com a "Bê" entre a casa dela e a volta para a casa do Taiguara onde o papo continuou na varanda. Pouco antes de anoitecer foi-se afim de sair com algum amigo e não mais nos vimos nos dias seguintes.
Um dos gatinhos da casa
A primeira noite em Ilhabela caiu com o aparecimento de muitos vaga-lumes e um céu estrelado, arrematada pelo marulho distante nas praias próximas lá embaixo, o ronco dos motores das balsas e ocasionais apitos dos navios. Toda essa combinação, embora não fosse, soava-me como novidade, tantos anos distante do mar no silêncio e nos vazios demográficos do Planalto Central. Taiguara chegou lá pelas 3 da manhã, seu horário habitual pois é cozinheiro em um restaurante nas proximidades. 
Acordamos depois das 9:00 e Taiguara quis me levar a conhecer uma das cachoeiras; fomos de carro e chegamos rápido, emendando a caminhada de uma trilha fácil onde, depois de uns 5 a 10 minutos, chegamos à cachoeira Paquetá, com excelentes poços para banho! Algumas pessoas chegaram ao lugar depois e, sendo ambos adeptos do "quanto menos gente, melhor", ficamos ali uns 20 minutos apenas; ele também precisava preparar-se para o trabalho! Preparou-nos um ótimo almoço e perto das 15:00 foi para o restaurante! 
Resolvi sair à cata de mais uma cachoeira que encontrei no mapa da ilha e, pedalando, dali a pouco estava na cachoeira três tombos. Não é lá convidativa ao banho com poços muito pequenos e rasos, sendo mais visual em sua queda principal. Haviam poucas pessoas e logo fiquei só, aproveitando para um banho nu sob a maior queda. Prendi a "namoradinha" a uma árvore e tentei trilhar morro acima afim de alcançar a cabeceira e fazer uma foto da vista lá de cima, certamente espetacular, mas não encontrei forma de chegar. Na volta, fiz algumas fotos do visual no acesso à cachoeira e, em seguida, parei no meio do caminho em um píer ao lado da pequena praia Portinho, onde registrei o maravilhoso pôr do Sol. Com o cair da noite, pedalei pela cidadela de Ilhabela nas ciclovias descobrindo um comércio fortemente orientando para o turismo com muitas lojas de roupas e itens diversos para praia e veraneio. Passei em um mercado e voltei à casa, finalizando assim, meu segundo dia na Ilha!



Vista da casa onde fiquei em Ilhabela




Mudinha de Canabis na porta da casa
Espelho múltiplo

Vista no caminho para a cachoeira Três Tombos

Vista no caminho para a cachoeira Três Tombos



Vista no caminho para a cachoeira Três Tombos


Pôr do Sol na praia Portinho