quinta-feira, 5 de outubro de 2017

2ª PARADA - PARACATU

ANFITRIÃO VIA COUCHSURFING - 05/10/17


110Km rodados
Strava: https://www.strava.com/activities/1217018138
Progresso de viagem: 31,4% (230Km)

Muito vento contra, constante durante as quatro primeiras horas de viagem! Foi assim que começou o segundo dia de pedalada. Após cerca de 2 horas na estrada alcancei o primeiro outro ciclo-viajante. Infelizmente não tomei nota de seu nome; tem 28 anos e disse estar na estrada desde os 16, tendo fugido de um lar violento. Em uma velha bicicleta de relação fixa tinha como bagageiros frontal e traseiro duas caixas plásticas de feira. Na frente levava alguma comida, roupa e cobertor; atrás ia um cãozinho vira-latas, o "perninha", manco por um acidente num riacho. Contou que com o cão dividia suas refeições e que ministrava a ele um anti-inflamatório para o ferimento. Viajava sozinho mas dali a horas se encontraria com algum colega de estrada em um posto de combustível abandonado, onde passariam a noite. Prosseguimos juntos por uma hora, às vezes pedalando lento, às vezes a pé quando vento e subida se combinavam exaustivamente. À nossa frente abriam-se campos de cultivo a perder de vista em ambos os lados da estrada! Calculando ali o limite de minha redução de ritmo, parti então à frente afim de alcançar Paracatu antes do anoitecer!
Comprei uma quentinha num restaurante à beira da estrada e parei, alguns quilômetros à frente, quando a fome veio, sob algumas mangueiras para almoçar. Alguns cães de um sítio próximo surgiram esperançosos, bem como galinhas e um gato. Com a bike encostada à sombra da mangueira, subi em um largo galho baixo onde deitei-me para fazer o quimo. Na estrada, alcançara-me o viajante que eu conhecera e, após vê-lo passar, senti o alerta das horas. Era preciso continuar! Logo o vi saindo da estrada rumo a um rancho à cata de sua refeição (certamente doada) e foi a última vez que o vi! Por volta das 16:00 avistei a primeira massa de água: era o rio São Marcos represado, marcando a divisa de Goiás com Minas Gerais! A estiagem baixou-lhe muito as águas expondo largos barreiros rodeados por um cerrado torrado de queimadas... era o cartão de visitas de Minas Gerais que já denunciava ali sua triste situação! Seguiu-se uma extenuante sequência de subidas íngremes com aclives que ainda não havia encarado e que cobraram muito do meu condicionamento. Então, à luz do ocaso, começou uma boa e constante descida; à esquerda da estrada abriu-se um vale totalmente tomado por uma mineradora, uma enorme cicatriz cinzenta no cerrado.
Paracatu surgiu ao anoitecer em ruas estreitas de pedras para lá de centenárias, ladeadas aqui e ali por casario igualmente antigo e desafiando-me com ladeiras e subidas de inclinações surreais para qualquer brasiliense! Eu já conseguira, dois dias antes, combinar recepção via Couchsurfing e, mesmo com o localizador no Google Maps, perdi-me nos meandros da cidade cujas ruas formam um traçado caótico. Novamente a bateria do celular esgotou-se e percebi que um carregador solar teria sido um ótimo investimento para a viagem! Procurei então pelo SESC, que eu sabia ser próximo ao meu destino, e ali dei carga no celular para fazer contatos. Cheguei à casa de meu anfitrião, João Rabelo, por volta das 21:00 e fui muito bem recebido por sua mãe, Da. Ivete, o irmão Marcelo! Mais tarde conheci também o namorado do meu anfitrião, Jardel! João foi meu primeiro anfitrião via couchsurfing e eu fui seu primeiro hóspede! Ele preparou e cedeu-me seu próprio quarto e Da. Ivete logo providenciou-me refeições. O irmão, Marcelo tecia ocasionais conversas futebolísticas, sua paixão. João trabalha no momento como Coach e também é um viajante, revelando sua agonia por estar momentaneamente atado à limitada Paracatu. Trabalhou algum tempo nos EUA e pretende voltar a trilhar esse caminho. Tivemos ótimas conversas!
No dia seguinte, João me levou a conhecer o centro histórico de Paracatu onde fomos à Casa de Cultura, um belo edifício do seculo 18 que fora casa senhorial e sob a qual existira uma senzala. Logo na entrada deparei-me com retratos de prováveis ancestrais distantes, um casal da família Botelho de Minas Gerais. No edifício com grossas paredes de pau a pique acabado em cimento, teto com forro de palha trançada e pé direito alto, sucediam-se amplos ambientes com móveis coloniais de madeira maciça, incluindo um aparador de sala de jantar que precisa de oito homens para ser movido. Em exposição, pinturas, esculturas e rendas de artesãos locais mesclavam-se a relógios de parede antigos, telas a óleo de artistas paracatuenses retratando a cidade e seus habitantes de tempos idos. Alguns ambientes foram convertidos para atividades atuais como uma sala para estudo comunitário de música e outra para artes plásticas. No piso abaixo existe uma sala de aula antiga com carteiras inteiriças para estudantes aos pares e com furos para tinteiros os tampos, dignas de novelas de época! Ali foi instalado um pequeno palco com cortina constituindo uma escolinha de teatro. Ao lado, a antiga senzala exibe uma porção da parede em sua forma original, sem acabamento, revelando pedras e pau-a-pique. A cozinha colonial conserva o fogão a lenha original, inclusive em uso no momento! Uma cristaleira antiga expõe meias cabaças com pinturas em seu interior, sempre retratando a cidade antiga e há também uma coleção de máquinas de costura antigas junto a bordados e fazendas de produção local em exposição. O edifício abraça, com amplas varandas, um pátio interno que contém um jardim e um poço, que era a fonte de água da casa. O pátio abre-se em um dos lados para um pequeno anfiteatro na parte baixa do terreno. Comovido com o peso histórico do lugar mas não necessariamente consoante à sua história, desci à cávea e testei a acústica recitando uma passagem da Ilíada de Homero! Meu anfitrião, ali nascido e criado, desconhecia a Casa de Cultura e viu nela ótimo refúgio para suas leituras, seu deleite na maior parte do tempo em que estive com ele!
Aparador de madeira maciça: Oito homens para movê-lo!


Pátio interno da Casa de Cultura de Paracatu-MG

Casa da Cultura de Paracatu-MG

Chafariz de  1798
Seguimos para o museu histórico instalado em outro casarão colonial onde estão expostos objetos diversos do ciclo do ouro, motivo do surgimento da cidade. A partir de uma grande varanda inteiriça, em toda a face traseira do edifício, sucedem-se os ambientes que expõem peças antigas de mineração, de trato de animais como estribos, arreios e até um castrador de touros (deixa o touro com o pinto dele, eu disse. haeuhauhe). Noutros ambientes surgem objetos do cotidiano doméstico da época, peças para tratamento e refino de ouro e outras tantas de toda a labuta sertaneja, além de projetores antigos de cinema de diferentes épocas, a começar por um enorme projetor feito de ferro fundido, com peso na casa das centenas de quilos! Passamos ainda por um antigo chafariz datado de 1798 (hoje seco) e, ao lado, uma capelinha com o interior todo decorado com iluminuras pintadas a mão. Nas ruas de pedra de todo o conjunto ainda existem, às portas dos edifícios, antigos postes de madeira onde prendiam-se os arreios dos cavalos.
Com João Rabelo e Jader, meus anfitriões em Paracatu-MG
À noite fomos, meu anfitrião, o irmão, seu namorado e eu a um botequim na avenida mais movimentada da cidade, onde acontece a vida noturna. Com ambiente tematizado do rock clássico e sub-cultura estradeira norte-americana, tomamos umas cervejas com petiscos ao som de boa música! Descansado por um dia inteiro sem pedalar, preparei os alforges para partir na manhã seguinte; em meu coração a incerteza de que os riscos de tal viagem valeriam a pena já haviam caído por terra! Amanheceu e deixei esta hospitaleira família mineira, toda reunida na mesa para o café, com a certeza de que gostaria de revê-los novamente!
Muito obrigado, João!


Tapeçaria na entrada da Casa da
Cultura de Paracatu


Capelinha ao lado do chafariz




Teto da capelinha




Oratório familiar dentro do Museu




Pintura em cabaças


Antigo esconderijo de amantes, rs




Telas bordadas


Pilão d´água


Antiga senzala transofrmada em restaurante


Anfiteatro


Casal da família Botelho de Minas (prováveis antepassados
indiretos), fundadores do museu





Luminária em pedaço de tronco










Preta velha contadeira de "causos"

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